segunda-feira, 3 de abril de 2017

ÉPOCA RETRATA O RIO DO DESESPERO

Uma reportagem profunda e elucidativa, da Revista Época, sob o título RIO, CIDADE DESESPERO, tece um panorama da crise no Estado do Rio de Janeiro, agravada quando não parecia poder mais se agravar, com o peso das acusações e as investigações de corrupção do deputado estadual presidente da ALERJ, Jorge Picciani (foto).  Abaixo, O Redator publica na íntegra, esta matéria que não pede qualquer correção, observação ou emenda, pela competência com que foi escrita. Leia.

No fim de tarde de quarta-feira, dia 29, o deputado estadual Jânio Mendes, do PDT, discursava no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj. Discorria contra a descriminalização do aborto, enquanto exibia um minúsculo boneco de um feto, indecifrável mesmo a curta distância. O salão estava vazio, imerso em um silêncio que dizia muito sobre o medo que abatia seus colegas. Horas antes, o presidente da Casa, deputado Jorge Picciani, do PMDB, o homem mais poderoso na política do Rio de Janeiro, fora levado à força pela Polícia Federal para depor. E tivera sorte. Na mesma hora, cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, órgão ligado à Alerj e encarremaiagado de fiscalizar as contas do governo, foram presos, acusados de corrupção. Seriam depois levados ao complexo penitenciário de Bangu, onde já estão o ex-governador Sérgio Cabral, alguns de seus secretários e o empresário Eike Batista. Realmente, era um dia para políticos no Rio se esconderem.

Picciani foi acordado por agentes da Polícia Federal na porta de sua casa, em um condomínio na Barra da Tijuca (a PF já conhecia o caminho: Picciani é vizinho do ex-deputado Eduardo Cunha, também do PMDB). Pediu para beber um café antes de conhecer a situa­ção, e foi ele próprio para a cozinha preparar. Os agentes cumpriam um mandado de condução coercitiva expedido pelo ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça. Haveria também uma operação de busca e apreensão em seu gabinete. Era a Operação O Quinto do Ouro, uma referência ao imposto cobrado pela Coroa Portuguesa nos tempos coloniais, esperada no meio político e em seu submundo desde que Jonas Lopes, ex-presidente do TCE, fechou um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal. Picciani foi interrogado como suspeito de intermediar um esquema pelo qual conselheiros do TCE recebiam propina para encobrir irregularidades cometidas por empresas que faziam negócios com o governo do Rio de Janeiro.

O despacho do STJ que autorizou a operação, revelado por ÉPOCA na sexta-feira, dia 31, aponta que os crimes começaram na presidência do conselheiro Maurício Nolasco (2007 a 2010) e se perpetuaram durante a gestão de Jonas Lopes Júnior. Em sua delação premiada, Lopes contou – entre outras coisas – que houve desvio de 15% dos pagamentos de despesas de alimentação dos detentos do Rio de Janeiro para abastecer os bolsos dos conselheiros. “Consta que cada conselheiro teria recebido cerca de R$ 1,2 milhão”, diz o texto. A investigação descobriu também que, em 2015, cada um dos conselheiros recebeu R$ 60 mil em propina para favorecer empresas de transporte em processos.

O CHEFE

O terceiro esquema relatado por Jonas era a cobrança de 1% de propina sobre os contratos de obras públicas do governo do Rio de Janeiro cujos valores superavam R$ 5 milhões. Em relação a esse caso, o despacho do STJ não detalha valores. “Enquanto não forem tomados os depoimentos e analisados os documentos e demais provas que haverão de ser obtidos com a busca e apreensão ora deferida, é preciso que os conselheiros permaneçam presos, seja para não influenciarem na
tomada de outros depoimentos (interferindo na investigação através de contato com outros envolvidos e eventuais testemunhas), seja para impedir a destruição de provas ou a ocultação de valores”, diz o ministro Felix Fischer em sua decisão. Nos três casos, o deputado Jorge Picciani é citado no despacho como alguém que contribuiu e atuou “para a consumação de tais crimes”.

Na véspera da batida policial, Picciani dera uma demonstração de poder. Levou um grupo de deputados estaduais em um voo fretado para um encontro com o alto escalão de Brasília. O grupo se reuniu com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, do DEM do Rio de Janeiro, e discutiu alternativas para superar a crise. Há meses, o estado pleiteia um alívio no pagamento de sua dívida com a União, para tentar recuperar-se da derrocada causada por fatores externos, mas também por corrupção e – principalmente – por péssimas decisões de seus governantes. Na sequên­cia, a turma encontrou o presidente Michel Temer, que ouviu “impávido” – segundo um dos presentes – uma explanação feita por Picciani. O tom foi alarmista: se nada for feito, o estado do Rio corre o risco de afundar em convulsão social.

No sexto período como presidente da Alerj, Picciani é uma espécie de primeiro-ministro de um Rio esvaziado. Assumiu a posição de força no vácuo aberto pela prisão do ex-governador Sérgio Cabral e pelo enfraquecimento do governador Luiz Fernando Pezão, que enfrentou um tratamento de câncer, é investigado pela Operação Lava Jato e administra um estado quebrado, com todos os desgastes que isso acarreta. Controlador da Alerj, de quem Pezão depende, Picciani reaglutinou a base em torno de si e passou a controlar o governo indiretamente. Tornou-se dono não só de muitos, mas dos mais importantes cargos no governo. Em troca, salvou Pezão. No mês passado, em uma jogada que só faz quem tem domínio da situação, aprovou em uma hora, numa manhã de segunda-feira, um projeto que autoriza Pezão a privatizar a Cedae, a estatal de água e saneamento, a contrapartida prometida pelo governador ao governo federal em troca do socorro financeiro ao Rio. “Temos o agravamento de uma crise com consequências imprevisíveis”, afirma o deputado Carlos Osório, do PSDB. “Picciani é o fiador da base aliada, e esse arranhão torna essa base mais frágil e volátil.”

No contexto político, o termo “volátil” quer dizer que os deputados podem duvidar do poder de Picciani de agora em diante. Picciani ficou fraco e, portanto, a vida ficará mais difícil para Pezão. O problema de Picciani é de Pezão porque ele precisa aprovar na Assembleia uma série de medidas impopulares, capazes de reduzir o rombo de R$ 17 bilhões no orçamento deste ano. A tal “convulsão social” apregoada por Picciani é uma ameaça real. A bandidagem ressurgiu num momento em que a carestia deixa a polícia mal equipada e à beira de uma greve; o sistema de saúde está perto do colapso; os salários de servidores estão atrasados, a ponto de a universidade estadual mal ter condições de funcionar.

DESVIO

Após o incômodo baque da condução coercitiva, Picciani fez o previsto pela cartilha e correu para seu terreno seguro, a Assembleia. No gabinete, recebeu um caloroso beija-mão de boa parte dos parlamentares. Fez um discurso de 20 minutos, no qual reclamou que não teve acesso ao inquérito, se eximiu de culpa nos episódios delatados e disse estar disposto a prestar esclarecimentos. Foi aplaudido três vezes pelos pares, ante galerias vazias, silenciosas, uma garantia obtida meses atrás, quando manifestantes invadiram o prédio da Alerj. Apesar das palmas, a base aliada está “assustada” com a Lava Jato ter chegado a seu tutor. “Até onde eles (os deputados da base) vão avaliar que compensa ficar desse lado? O paralelo com Eduardo Cunha é inevitável”, diz o deputado Flavio Serafini, do PSOL, partido que fez um pedido de afastamento de Picciani da presidência. “Há um equilíbrio instável (na Alerj). Qualquer sopro pode afetá-lo”, afirma o deputado Luiz Paulo, do PSDB. “Tem de ver quem vai sobreviver. Eu diria que esse primeiro tiro deu na água, mas acredito que outros tiros virão”, diz um deputado da base de apoio.

Além da questão do TCE, a Lava Jato tem esbarrado nos negócios privados de Picciani. Ele e seus filhos – dois deles políticos, o deputado estadual Rafael e o deputado federal e ministro Leonardo – criam gado de elite para reprodução e são donos da Tamoio Mineração, cuja pedreira chegou a faturar R$ 6 milhões por mês, impulsionada pelas obras da Olimpíada e dos condomínios Minha Casa Minha Vida. Picciani entrou para o ramo de extração de pedras em 2012, numa transação assinada por um homem morto um ano antes. Após ÉPOCA revelar a assombração, o deputado culpou o contador. Depois de quatro anos de prosperidade, a Tamoio mergulhou na crise. Em fevereiro, o faturamento mensal despencou para R$ 700 mil, metade dos funcionários foi demitida e a empresa atrasou o pagamento de impostos.

MESADA

O revés coincide com o desmantelamento do esquema de corrupção montado pelo ex-governador Sérgio Cabral. Com a ameaça de falência, Picciani recorreu a um conglomerado econômico em busca de socorro. No início de março, o Grupo Petrópolis, fabricante da cerveja Itaipava, seu sócio na Tamoio, adiantou R$ 250 mil para quitar impostos atrasados e topou emprestar R$ 3 milhões para equilibrar as contas. Recebeu como garantia o terreno da sede da pedreira, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O Petrópolis aparece na Lava Jato, nas delações de alguns dos 78 executivos da Odebrecht, como uma espécie de laranja da empreiteira para pagar propina via doações eleitorais. Nas eleições de 2014, o Grupo Petrópolis doou R$ 57,2 milhões a partidos e candidatos. Entre os maiores beneficiados estão a campanha de reeleição de Dilma Rousseff, que recebeu R$ 17,5 milhões, e o PMDB fluminense, presidido por Picciani, agraciado com R$ 11 milhões.
Sobre a condução coercitiva na Operação O Quinto do Ouro, o deputado Jorge Picciani respondeu, por meio de nota, que não sabe do que é acusado. “Nem o deputado Jorge Picciani nem seus advogados tiveram acesso ao inquérito do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”, diz o texto. “Entretanto, a julgar pelas únicas três perguntas que lhe foram feitas durante seu depoimento, tudo indica que a delação do bandido confesso Jonas Lopes é extremamente frágil.” Picciani diz que nunca recebeu doação eleitoral do Grupo Petrópolis. “Todos meus negócios são lícitos e auditados”, afirma. O deputado atribui o naufrágio da Tamoio Mineração à “crise na construção civil, e não à crise do estado”. O grupo Petrópolis respondeu por meio de nota. “Todas as doações eleitorais feitas pelo Grupo Petrópolis seguiram estritamente a legislação e estão devidamente registradas”, afirma.

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