quarta-feira, 22 de abril de 2015

Crônica - AUTORRETRATO

Demétrio Sena, Magé - RJ.



Em muitos e muitos casos, a justiça induz o cidadão a ser injusto. A polícia o convence a ser bandido. É como a vida, que nos prepara pra morte, ou o sonho que nos desperta nos braços farpados da realidade nua e crua, depois de muita camuflagem ou cozimento em banho maria.Mesmo após tantos anos de peregrinação a esmo, para provar à justiça federal que não é um megaempresário fraudulento, o modesto funcionário público Silvério não enlouqueceu. Ainda. Vive à beira de perder o emprego, de quando em vez tem a conta salário - de proventos também modestos - bloqueada inconstitucionalmente, além de ter seu único imóvel sempre avaliado para fins de penhora. No mais, muito; muito constrangimento com visitas de comissários de justiça. Situação que se agrava quando ele tenta provar inocência e se depara com atendentes irônicos e defensores públicos de má vontade que descontinuam bem cedo seus acompanhamentos.
Com o tempo, Silvério perdeu o respeito pelas instituições oficiais; os poderes; o governo. Não apenas o respeito, mas também as esperanças em tudo isso. Entretanto, mantém a índole que o faz gostar de ser correto com as pessoas. Cumprir a palavra empenhada; o compromisso firmado; a dívida feita com cidadãos comuns feito ele. Quer manter sua imagem limpa, o nome honrado, e receber desses cidadãos olhares aprovadores; palavras de confiança; sorrisos de aplauso por sua boa conduta.
Perante os poderes, o indivíduo já não faz questão de provar inocência. Sabe que o governo, receita e justiça federais há muito identificaram - e fazem vistas grossas - os reais culpados, que porcerto estão acima do sistema, por questões de patente, ou acima das patentes, por força de poder econômico. É essa hierarquia torta, enviesada, que faz do cidadão sorteado esse alvo predileto; caminho fácil para que a justiça ostente movimentação. Mostre serviço.
Foi desta forma que, mesmo ainda não tendo praticado qualquer crime ou delito contra os poderes constituídos, Silvério aprendeu com os órgãos que fingem combater essas práticas a seguinte lição: delito ou crime contra os poderes não é de fato crime ou delito. O que se faz contra o governo, em um todo, por mais grave que pareça, não passa de um "toma lá, dá cá". Seja como for, ele ainda não fez algo do gênero.
No momento, a única distorção de caráter do cidadão Silvério realmente mora na compreensão aos que se rebelam contra tudo e decidem se vingar do sistema... desafiar os poderes. Mas o tempo, com seus requintes irônicos, ainda pode convocar o facínora que as injustiças fertilizaram em seu coração. A partir daí, o cidadão realmente culpado, por culpa do sistema, nunca mais será o alvo predileto, por já não ser um caminho fácil, sem riscos, para que a justiça mostre serviço.
Tudo bem pros poderes. Para cada Silvério finalmente acima do alcance, nascem milhares e milhares de outros, prontinhos para serem bodes expiatórios da justiça em qualquer instância. 

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